segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

DESESPERO DE UMA MULHER CRAVADA


Ando estranha, meio natureza morta talvez, não sei ao certo, murcha de fato. Ando dividida ao meio, com desejos incertos e vontades que não são minhas. De dia sou deserto, áspera e quente, morro de sede, de desejos, deliro sombria, me inquieto. De noite chovo, trovejo e relampeio sem parar, tremo de frio, solitária, despejo sobre meu corpo águas profundas, águas de sal. Amanheço e meu sol nada ilumina, nada aquece, sou só aparência.
As vezes afogo-me dentro de mim mesma, sufoco-me de agonia: anseio por uma vontade louca de respirar desesperadamente e assim me revigorar na exatidão do momento certo,e então, ahh estou chegando quase lá, chego tão perto, caiu invalida e morro outra vez. Tento respirar. Ahhh. Alivio. Ainda não sei quem sou.
As fases da lua não são suficiente para guardar dentro delas minhas mudanças, que há dias emudeçem, nem Cecília Meireles me entenderia, precisa então, a lua, de mais fases. Se sou cheia, não mínguo, se eu cresço, não sou nova. Sou lua do avesso, ninguém conhece. Venham até a mim, descobrir-me por inteira.
Certa vez um cara me fuçou as entranhas, penetrou minha alma, eu, muito inocente, deixei que fizesse tal asneira, ele me remexeu de um jeito bem forte, eu fechei os olhos e permiti. Ele me adentrou bem fundo, dizia me amar lindamente, que nas cegas eu poderia andar, que nada de ruim me aconteceria, ele estaria lá, a me proteger. Fui enganada, em uma noite de sábado ou domingo fui traída, apedrejada e esfaqueada por esse ser que dizia dentro de mim morar. Ele arrependido veio me pedir perdão, eu mais uma vez me fiz de cega, e o aceitei de volta, sem crime nem castigos, acreditei novamente naquelas palavras, havia me feito da presença dele, na sua ausência, eu era nada. O tempo passou, ele nunca voltou a ser o mesmo, e nem era mais a mesma, estava em alerta, meu organismo, meio que em modo de defesa o expulsou de mim, foi doloroso sua saída, dessa vez sem volta, nos separamos de vez.
Desde então enlouqueci, ando afetada, com um buraco dentro de mim. É um poço sem fundo e sem luz. Vago a sorrir. Assim, meio que num parto de mim mesmo, me reergo quase viril, caiu sempre, nunca desisto. Minhas lágrimas vão aguando meu peito trovador.
 Nascerão rosas vermelhas do meu peito, e elas se alimentarão da dor do meu coração, há pulsar quase em vão, ele que um dia não me pertenceu, hoje alimentará essas rosas,     que também irão me cravar os espinhos, aumentando então a minha dor, só assim, tu rosas, serás mais vermelha que já és. Serei uma roseira ambulante, muitos me roubarão vermelhas pétalas, mas para que havia de ficar comigo, se um dia todas elas brocharão? Então as levem, e me deixem aqui sozinha. Porém se alguém descobrir quem sou, me avise por favor. (Ítalo Lima)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

E SE SEU PAI FOSSE...?


Automóvel intacto, alvo, com números expostos por todo o seu corpo. Era assim o táxi de Sérgio. Estava na profissão há quase 20 anos, com orgulho de bater no peito do que faz. Com muitas histórias que ouve de tantos clientes, eis uma que vale a pena ser contada e repetida.
Era um daqueles sábados movimentados, cheios de festas em Teresina. Eram mais de dez da noite quando adentraram dentro do carro dois homens, um mais novo que outro, sentaram no banco de trás. Sérgio perguntou o destino dos dois, responderam apenas “siga em frente”. Sérgio achou estranhou, os observava pelo retrovisor, vez ou outra. Houve um silêncio tremendo dentro do carro, o rompimento disso vinha apenas no chiado do rádio do taxista, que chegava a ser enfadonho.
O diálogo iniciou entre os dois homens de trás, eram pai e filho. Havia uma tensão no falar do pai, um tremor na voz dele. O filho só escutava. O pai tentava falar algo, mas parecia que estava engasgado, sufocado, as lagrimas desceram, o filho não entendia o que estava acontecendo. Sérgio sentiu pena do homem que chorava feito uma criança. E seguiam sem rumo.
O pai tentava explicar o quanto era difícil a situação, que o limite havia chegado, que nada poderia conter esse desejo que estava tomando de conta dele. E no auge da sua agonia, o pai não contendo as lágrimas no rosto, falou em um tom de alívio, como quem suspira pela ultima vez: “Filho, eu sou gay”. O silêncio pairou no ar. Sérgio engoliu a seco.
“Gay, como assim pai?” O pai não soube explicar o por que, só sabia que era assim, que nada podia calar os desejos do corpo e da alma, que há pessoas que demora um certo tempo para aceitar uma determinada condição, principalmente quando ela é vista com olhos preconceituosos.  O filho pediu para parar o carro, desceu as pressas. O pai, ainda em pranto, jogou uma nota de cinquenta reais no meu colo, não pediu troco. Desceu em busca do filho
Sérgio ficou ali, pensativo, imaginando a controvérsia da situação. Hoje em dia há tantos filhos gays sendo aceitos pelos pais ou família, também há o contrário, filhos sendo rejeitados, na esperança de um dia serem aceitos pelos pais. Tenho certeza que se fosse você o gay da historia, você gostaria de ser aceito também. Mas, e se fosse seu pai gay, você o aceitaria?   (Ítalo Lima)

sábado, 16 de fevereiro de 2013

DOR DOS OUTROS


Era vinte de abril de algum ano que não lembro bem. Alias, data nenhuma me era importante, a não ser essa. Eu tinha 12 anos na época, criolo, cabeça raspada, vestia um traje maltrapilho encardido, morador de rua, ia todos os dias pedir dinheiro no sinal, o sol quente de meio dia cozinhava os miolos da minha cabeça, me fazia de forte, os pés descalços me causavam rachaduras. Mas naquele dia foi diferente, antes de sair da minha caixa de papelão eu já sabia que não iria mais voltar, até o sol se fez de tímido e não apareceu. Sentei na calçado e fiquei  esperando pelo sinal fechar, ia de carro em carro. “Ô tio me dar um trocado”. Recebia vários “Não” na cara. Vez ou outra alguém era tocado o coração e me dava dinheiro. Recebia contente.
No fim da manhã, perto de meio o dia, o sinal fechado, encostei-me ao carro cinza, a mulher abaixa o vidro, seus olhos estavam vermelhos, ela chorava e soluçava sem parar, me assustei com aquilo. “Por que ta chorando tia?” Ela me olhou bem fundo e disse: “Meu me marido me traiu e ta doendo muito.” Não entendi tal dor. “Tia, sabe o que é que dói de verdade? É minha barriga de fome, é ter que todo dia lutar por um prato de comida.” Ela me olhou com tanta firmeza que eu me senti fisgado à ela. O sinal abriu. Ela pediu que eu entrasse no carro. Entrei sem pensar.
Ela era advogada, me levou para sua casa, me deu comida, roupa e um lar, me adotou. Hoje, dez anos depois, por ironia do destino, sou eu que sofro de amores, fui traído também, e era uma dor que eu julgava estranha, agora me sufoca, e me faz mendigo de novo. Então entendi o choro dela. (Ítalo Lima)

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

VERDE PASSAGEIRO


     Desde pequena afoita e birrenta, do interior do Piauí, Helena sonhava na Cidade Verde ir morar, juntou dinheiro e a tralha inteira com 20 anos em Teresina foi viver. Pôs as trouxas nas costas, a sorte na cidade foi tentar. Em uma noite de dezembro pegou carona com um cargueiro desconhecido, levou chuva e vento frio. Não lhe deram agasalho nem cobertura. Ansiou pelo clarão da lua, mas só chuva lhe vinha. Com viagem de longo tamanho, seus medos enfrentou, refletiu sobre sua vinda, e se encolheu com pranto nobre.  Logo nem amanhecia, na sarjeta ensopada de Teresina foi despejada. Não conhecia nada, nem ninguém. Saiu caminhando, até raiar o dia. Pediu ajuda a São Francisco. Sua prece era vão. E nas sujas calçadas ela andou.  Subiu no primeiro ônibus que passara. Juntou algum trocado para pagar. Sento numa cadeira, daquelas mais altas, colocava a cabeça para fora da janela e procurou por aquilo que veio buscar. Não achando o que queria, Helena foi logo tratando de perguntar para algum sujeito, se ali era Teresina. Ao confirmar a resposta, ela logo estranhou. Resolveu esperar. A lotação do ônibus veio em seguida, todos apertados, quase sem respirar. Não acostumada com aquilo, ficou no canto, calada, pois nem se mexer podia. Depois de vazio novamente, ela resolveu descer daquele veículo.
     Por entre os carros da avenida movimentada foi passar. Assustada com tanto barulho, ainda procurava aquilo que veio contemplar. Sentiu fome. Na lanchonete da esquina, garapa de cana foi tomar. Em desespero, percebeu que sua trouxa, dentro do ônibus havia ficado, pôs a mão na cabeça, gritou “ave maria’’ e então se desembestou. Sem saber como pagar, dalí saiu correndo. E se lembrou de tantas carreiras que dava para fugir da surra da mãe quando criança. Mas quando Helena olhou para trás não havia mais ninguém a perseguindo. Não cansada de tanto azar, recuperou o fôlego e se agravou da situação. Sentou no banco da praça junto com os pombos. Ela jamais os tinham visto assim, tão de perto. E desejou ter azas como eles, e ser leve também. Então chorou até soluçar. Chamou a atenção do homem que ali passava e do lado dela ele sentou. Perguntou por que tamanha tristeza. Então ela explicou: que veio para Teresina, achando que a veria a cidade verde, mas não, as tamanhas arvores já não estavam mais ali. Ele então bobo, riu da inocência da moça. Mas sabia que era verdade, que naquela cidade o verde de outrora se acabou. O homem tão perverso o consumiu. Porém o moço olhou bem no fundo dos olhos de Helena e disse que nessa cidade nunca houvera  algo tão verde que o olhar dela. Saíram os dois, contentes de ver a vida.        (Ítalo Lima)